Estamos iniciando o planejamento da 2ª fase do Projeto-Aventura ‘Desafiando o Rio-Mar’.
Por Cel Eng R/1 Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 23 de Março de 2009
Olha esta água, que é negra como tinta.Posta nas mãos, é alva que faz gosto;Dá por visto o nanquim com que se pinta,Nos olhos, a paisagem de um desgosto.
(Quintino Cunha)
Estamos iniciando o planejamento da 2ª fase do Projeto-Aventura ‘Desafiando o Rio-Mar’. Com o objetivo de iniciar uma metódica preparação intelectual sobre nossa próxima jornada, no rio Negro, no final do ano, vamos publicar uma série de artigos que visam apresentar aos leitores um pouco, dos mistérios e encantos dessa jóia de águas negras. A descida do ‘Rio Negro’, de caiaque, é, também, uma homenagem ao importante escritor da literatura brasileira, Euclides da Cunha, no ano do centenário da sua morte. Euclides foi covardemente assassinado em 15 de agosto de 1909, aos 43 anos de idade.
- Projeto-Aventura ‘Desafiando o Rio Mar’ - 2ª Fase
Percorremos todo o Rio Solimões, de Tabatinga a Manaus, num percurso que superou os 1700 quilômetros, tendo em vista a exploração de afluentes, paranás, furos e lagos ao longo de sua calha. Não atingimos o Mar, como o próprio nome do projeto indica, mas resolvemos que, antes de atingi-lo, devemos percorrer o quarto maior rio brasileiro em vazão: o Rio Negro. Estamos na fase de planejamento e treinamento sem uma data marcada para o início da jornada, tendo em vista que ainda não dispormos dos recursos necessários, da ordem de R$30.000,00 para a execução do projeto.
- Alfred Russel Wallace
Wallace nasceu, em 08 de janeiro de 1823, no vilarejo de Llandoc, próximo a Usk, Monmouthshire, País de Gales. Quando lecionava na ‘Collegiate School’, em Leicester, conheceu o jovem entomologista, de 19 anos, Henry Walter Bates que já publicara, no periódico ‘The Zoologist’, um artigo sobre insetos. Os dois jovens se tornaram amigos e Bates o familiarizou com a entomologia. Abandonando a cátedra, passou a trabalhar como engenheiro civil. A nova profissão possibilitava passar grande parte do tempo ao ar livre permitindo-lhe dedicar-se à sua nova paixão - coletar insetos. Em 1846, aos 23 anos, conseguiu adquirir uma casa de campo próximo de Neath, onde morou com sua mãe e irmãos. Nesse período, ele se correspondia com Bates a respeito do tratado evolucionista ‘Vestígios da História Natural da Criação’, a viagem de Charles Darwin, e ‘Princípios de Geologia’ de Charles Lyell.
- Wallace, no Brasil
Relata Wallace, na 1ª edição de suas ‘Viagens pelos rios Amazonas e Negro’: “o ardente desejo de visitar uma região tropical, de contemplar a exuberância da vida animal e vegetal que se dizia ali existir, e de ver com meus próprios olhos todas as maravilhas cujo conhecimento, através da leitura das narrativas dos viajantes, tanto me deleitavam, foram os motivos que me induziram a desfazer os compromissos profissionais e os vínculos familiares, e partir para ‘longes terras onde impera o infinito estio'. Minha atenção dirigiu-se para a cidade do Pará e o Rio Amazonas, por influência do opúsculo de Mr. Edwards (William H. Edwards) intitulado A Voyage up the Amazon”.
Wallace e Henry Bates, com 25 e 23 anos, respectivamente, partiram para o Brasil a bordo do Mischief e desembarcam em Salinópolis, Pará, em 26 de maio de 1848, com o objetivo de coletar espécimes vegetais e animais e vendê-los a colecionadores da Inglaterra. Em 1850, depois de mais de um ano de coletas no Pará e uma ruptura da sociedade com Bates, Wallace partiu, sozinho, para o rio Negro.
- Wallace, no rio Negro
Na primeira viagem pelo rio Negro, Wallace, foi até a divisa do Brasil com a Venezuela e subiu, em junho de 1851, o rio Uaupés até a cachoeira de Jauaretê. O rio Uaupés era inexplorado e Wallace ficou tão impressionado com a riqueza e com as características da fauna da região que abandonou o projeto de seguir viagem até os Andes, dedicando-se a uma exploração mais minuciosa do rio. Wallace retornou a Manaus para embalar as coleções que havia acumulado e despachá-las para a Inglaterra, bem como adquirir novas provisões.
Novamente sobe o rio Negro, retornando ao Uaupés, chegando até a confluência com o rio Cuquiari, na Colômbia. Muitas vezes tinham de transportar canoas e equipamento por terra, desviando de corredeiras e rochas. Wallace contraiu malária, em 1851, quando uma grande epidemia de febre amarela se abateu sobre a região. Ele sobreviveu, mas seu irmão, Herbert, em Belém, foi contagiado, e não resistiu à doença, morrendo, aos 22 anos.
Wallace teve sua paixão despertada pela variedade e beleza da fauna fluvial que o estimulava a desenhar meticulosamente cada nova espécie capturada. O resultado deste trabalho foi materializado em uma coleção de 212 gravuras. Além de coletar animais e plantas observou com grande interesse aspectos da cultura e dos costumes das populações locais, acrescentando às suas coleções uma grande quantidade de artefatos indígenas. Com o auxílio da bússola, um sextante e um relógio, ele calculou latitudes e longitudes, estimou distâncias e velocidades. De posse dessas informações preparou um mapa dos rios Negro e Uaupés, mais tarde doado à Royal Geographic Society, de Londres.
- Relato da Aldeia Jauaretê - Rio Uaupés
“Os dançarinos, em número de 15 ou 20, eram todos homens de meia idade. Eles formavam um semicírculo, cada um apoiando sua mão esquerda no ombro direito do dançarino vizinho. Estavam todos ataviados com seus ornatos plumários. Desta vez tive a oportunidade de ver o cocar, ou acangatara, que eles têm em alto apreço. Esse adorno consiste numa coroa de penas vermelhas e amarelas dispostas em filas regulares, firmemente presas a uma faixa de lianas trançadas. As penas haviam sido tiradas das coberteiras superiores das grandes araras-vermelhas, mas não tinham as cores que a Natureza lhes dá, pois esses índios dominam a exótica arte de alterar a coloração das penas dos pássaros. Eles arrancam as penas maiores e introduzem na ferida uma gotas da secreção leitosa da pele de uma determinada rã. Quando nascem as penas novas, estas apresentam uma brilhante coloração amarela ou alaranjada, sem qualquer laivo azul ou verde, que eram suas cores originais. Dizem eles que se estas penas modificadas forem arrancadas, as que nascerem depois serão idênticas às arrancadas, sem que seja necessário repetir-se a operação. Como é muito lento o processo de renovação das penas, e são necessárias muitas para fabricar-se um cocar, é por causa disso que quem possui um, só aceita desfazer-se dele em caso de grande necessidade.
Preso ao pente espetado no alto da cabeça há um elegante penacho de penas arrancadas das coberteiras da cauda das garças-brancas, ou então da parte inferior da cauda das grandes harpias. Essas penas são longas, brancas como neve, fofas, sedosas e quase tão belas quanto as plumas das avestruzes-brancas. Os índios prendem as harpias em viveiros ou gaiolas grandes, alimentando-as com frangos (elas consomem dois frangos por dia), unicamente visando à obtenção das preciosas penas. O grande problema é que tais aves são muito raras, além de não ser fácil capturar uma ainda nova. Daí, poucos são os indígenas que possuem esse ornato. Das extremidades dos pentes pendem fios de pêlos de macaco trançados, decorados com pequeninas penas, caindo-lhes pelas costas. Completam a toalete da cabeça umas graciosas penas felpudas espetadas nas orelhas, dando a esses homens um imponente e elegante aspecto.
Todos os dançarinos traziam ainda a grande pedra cilíndrica, o colar de contas brancas, o cinturão de dentes de onça, as apertadas ligas e as chocalhantes tornozeleiras. Alguns poucos exibiam um curiosíssimo ornato cuja natureza confundiu-me sobremaneira: era uma espécie de diadema de uma ou de muitas voltas em tomo da testa, de acordo com a quantidade de suas contas, que consistiam numas pecinhas curvas de coloração branca mas com uma delicada tonalidade cor-de-rosa. Não consegui distinguir se se tratava de pedaços de conchas ou de esmalte. Perguntei-lhes de que eram feitos os diademas e eles responderam que os compravam dos índios do Japurá e de outros rios, pagando caro por tais adornos, pois três ou quatro pecinhas custavam um machado! Elas pareceram-me ser pedaços das beiradas de conchas grandes, cortadas em peças incrivelmente regulares tanto no tamanho como no formato, a ponto de ter eu ficado em dúvida se seriam mesmo pedaços de concha, ou se os índios teriam condições de fabricar peças assim tão perfeitas.
Cada um trazia na mão uma lança, ou um feixe de flechas, ou um maracá pintado. A dança consistia simplesmente num único passo para o lado, repetindo-se ininterruptamente, de modo que os dançarinos iam dando uma volta circular pelo salão. Os pés que batiam com força no chão, as maracas e os coquinhos presos às pernas que chocalhavam sem parar, o cantochão de poucas palavras repetidas em vozes graves; tudo isso, simultaneamente, produzia um efeito animado e marcial. Em determinados intervalos, as moças entravam na dança. Cada uma colocava-se entre dois homens, abraçando-os pelas cinturas. O braço levantado do dançarino à sua direita obrigava-as a inclinar a cabeça para a frente, o que não lhes atrapalhava os movimentos, visto serem geralmente de baixa estatura. Elas ficavam na roda por uma ou duas voltas, retirando-se todas a um só tempo, obedecendo a algum sinal, provavelmente. Os homens prosseguiam com a dança e elas ficavam assentadas nos banquinhos ou no chão, até que chegasse o momento de retomarem seus lugares na roda.
A maior parte das mulheres usava uma tanga, isso é, um avental de contas muito curtinho, mas algumas estavam completamente despidas. Muitas delas usavam grandes brincos cilíndricos de cobre. O metal era tão polido que até parecia ouro. Brincos e ligas constituíam seus únicos enfeites. O resto - colares, braceletes, diademas, penachos - era inteiramente monopolizado pelos homens. A pintura que fazem no corpo é tão caprichosamente executada que lhes dá a aparência de estarem vestidas. Parece mesmo que assim o encaram. Sei que quem jamais presenciou uma cena como esta pode não concordar com este meu ponto de vista, mas. eu continuo afirmando que são muito mais atentatórias ao pudor as transparentes vestimentas cor-da-pele das nossas coristas do que a completa nudez dessas filhas da floresta”.
- Problemas na alfândega de Manaus (Barra)
“Finalmente, chegou a canoa na qual eu devia seguir rumo ao Pará. Combinado o preço da passagem, pus-me a reunir minhas coisas. A bagagem compunha-se de um grande número de caixas e caixotes, entre os quais seis volumosos baús que eu deixara com o Sr. Enrico no ano passado. Ele não pudera despachá-los antes de minha chegada, pois os figurões de Barra temiam que os mesmos contivessem artigos de contrabando, não permitindo que saíssem da cidade. Só agora consegui embarcá-los, depois de ter redigido uma declaração enumerando tudo o que neles havia e pago uma pequena taxa”.
- Chegada a Belém (cidade do Pará) e a partida para a Inglaterra
“Finalmente, no dia 2 de julho, chegamos à cidade do Pará, onde fui cordialmente recebido pelo meu amigo Mr. C. Dele recebi a alegre notícia de que havia um navio no porto que estava prestes a zarpar para Londres, devendo fazê-la daí a uma semana. (...) Estive com o Capitão John Turner, proprietário do brigue ‘Helen’, de 235 toneladas, e comprei minha passagem para Londres. Assim, quando chegou a manhã de 12 de julho, uma segunda-feira, dei adeus às casas brancas e às ondulantes palmeiras do Pará e subi a bordo da embarcação. Seu carregamento consistia de cerca de 120 toneladas de borracha e diversas de cacau, colorau, piaçaba e óleo de copaíba”.
No dia 6 de agosto daquele ano, o navio pegou fogo. Wallace relata: “quanto a mim, desci ao camarote, agora enfumaçado e ardente, procurando salvar o que pudesse. Peguei meu relógio, um bauzinho de folha-de-flandres contendo algumas camisas, duas cadernetas velhas com desenhos, e amontoei-os desordenadamente no convés”. O ‘bauzinho de folha-de-flandres’ continha algumas camisas, cadernos de anotações e seus desenhos de palmeiras e peixes. Depois de passarem 10 dias no mar, em botes salva-vidas, Wallace e a tripulação foram resgatados pelo navio ‘Jordeson’, comandado pelo capitão Venables, que tinha saído de Cuba e rumava para a Inglaterra.
No mesmo ano foram publicadas: As ‘Viagens pelos rios Amazonas e Negro’ e as gravuras de palmeiras. Wallace não conseguiu editar, porém, seus apontamentos e desenhos dos peixes do rio Negro.
- Memória resgatada
A pesquisadora Mônica de Toledo-Piza Ragazzo editou, em 2002, ‘Peixes do Rio Negro de Alfred Russel Wallace’, reunindo 212 gravuras de peixes e as anotações do naturalista. O livro resultou de uma cooperação, entre o Museu de Zoologia da USP e o Museu de História Natural de Londres e teve como objetivo reconhecer o trabalho realizado pelo naturalista na sua viagem à América do Sul.
As ilustrações das 190 espécies pertencentes a 33 famílias distintas, representam a maioria dos grandes grupos de peixes de água doce da América do Sul. O trabalho de identificação envolveu a comparação dos desenhos com as coleções do Museu de Zoologia da USP, de instituições estrangeiras e trabalhos taxonômicos. Várias espécies ilustradas por Wallace eram desconhecidas pela ciência da época e só vieram a ser formalmente descritas por pesquisadores contemporâneos.
- Evolução das Espécies
Em 1855, Wallace publicou o artigo ‘Sobre a Lei que tem Regulado a Introdução das Espécies’, no qual ele agrupa e enumera observações gerais sobre a distribuição geográfica e geológica das espécies e conclui que ‘Cada espécie surgiu coincidindo tanto em espaço quanto em tempo com uma espécie proximamente a ela aliada’. Wallace sabia que Darwin tinha interesse na questão e confiava na opinião dele sobre o assunto. Assim, lhe enviou para crítica, em 1858, seu ensaio ‘Sobre a Tendência das Variedades de se Separarem Indefinidamente do Tipo Original’.
Darwin recebeu o manuscrito cujo conteúdo era essencialmente o mesmo da teoria sobre a qual ele vinha trabalhando nos últimos 20 anos. Darwin relata a Charles Lyell: ‘ele não poderia ter feito um pequeno resumo melhor! Até os seus termos constam agora nos títulos dos meus capítulos!’. Charles Lyell e Joseph Hooker decidiram apresentar o ensaio de Wallace junto com trechos de um artigo, não publicado, que Darwin havia escrito, em 1844, à Linnean Society of London. As comunicações foram apresentadas, em 1 de julho de 1858, na ordem cronológica, confirmando a preocupação dos naturalistas em mostrar que Darwin não havia plagiado a tese de Wallace.
Wallace que, desde 1838, já propunha a luta pela sobrevivência como fator determinante na evolução das espécies aceitou o arranjo tendo em vista que o status científico de Darwin, naquela época, era muito superior ao seu. Quatro anos depois, ele iniciou uma compilação destas idéias que foram ganhando corpo, até o verão de 1844, gerando um denso volume de 230 páginas. Somente, em 1855, é que os dois começariam a se corresponder tendo em vista seu interesse comum nos temas ligados à teoria da evolução.
* Fonte: WALLACE, Alfred Russel - Viagens pelos rios Amazonas e Negro - Brasil - São Paulo, 1979 - Editora da Universidade de São Paulo.
Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)
Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS)
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