quarta-feira, 26 de agosto de 2009




Rondon e os Bororos

“Que sabe o brasileiro em geral de Rondon? Que era de origem índia e dedicou sua vida à reabilitação e à dignidade do silvícola. Que hoje está velho e cego e que no coração da nossa floresta ocidental há um imenso trato de terra batizado por Rondônia - em homenagem a Rondon. Nada mais. Quem foi esse homem, como viveu nos anos que lhe preparam a grandeza, qual o tecido dos fatos, heranças e influências, responsabilidades pela trama integral daquela personalidade de eleição”. (Rachel de Queiroz - 1957)

Por Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 21 de Julho de 2009

- Nomeação

Em julho de 1900, foi nomeado para participar da Comissão Construtora de Linhas Telegráficas cujo objetivo era estabelecer a ligação entre a Capital da República e as fronteiras com a Bolívia e o Paraguai. Rondon, entusiasmado, comenta que para empregar militares neste tipo de missão seria necessário que se lhes modificassem, gradativamente, os hábitos guerreiros, ao mesmo tempo que se lhes incutissem idéias de fraternidade.

- A Missão

“Comandas. E no olhar tens um tal magnetismo

E tanto em ti confia a grei que te acompanha

Que, às cegas, desceria ao mais profundo abismo,Galgaria, ao teu mando, a mais alta montanha.”

(Bastos Tigre)

O paludismo e a polineurite infligiram sérias baixas à comissão. Das 81 praças que haviam iniciado os trabalhos só restavam 30 acometidas pelas doenças. As baixas obrigam Rondon acumular funções o que o faz sem esmorecer e sem perder o foco principal de seu objetivo.

Paludismo (Malária): é uma doença infecciosa aguda ou crônica causada por protozoários parasitas do gênero Plasmodium, transmitidos pela picada do mosquito Anopheles.

Polinevrite (Polineurite): é o acometimento difuso e cinético de vários nervos periféricos mistos onde transtornos sensitivos, motores e autônomos ocorrerão.

“Regressei ao acampamento a pensar na tremenda responsabilidade quase insuperável, que ia enfrentar em minha vida de soldado e de engenheiro. Ia acumular as funções de meu ajudante, de explorador e locador, às minhas próprias, já tão difíceis, sobretudo porque estava a Comissão incompleta. Mas tudo enfrentaria com a firmeza habitual, sem vacilação, olhos fitos no objetivo que me havia imposto a mim próprio. E o serviço continuou no ritmo habitual, basta ler os diários: ‘distribuiram-se e prepararam-se postes, fizeram-se buracos, continuou o trabalho na picada...’ como se tudo estivesse correndo normalmente.

Claro que os trabalhos de exploração e locação passaram a ser feitos por mim. Foi quando recebemos a visita do Chemejera Oarinc Ecureu e do pagé Báru (céu) acompanhados de seus respectivos estados maiores e de turmas de caçada. Eram índios de Kejare e de Tatarimana. Partiram, depois da demora habitual, para Itiquira, prometendo visitar a Comissão, quando esta chegasse àquela localidade.

A 9 recebia telegrama do presidente de Mato Grosso, Almirante Alves de Barros. Animava-me a prosseguir nos trabalhos sem interrupção e assegurava que tudo seria providenciado. Alegrei-me, a despeito do telegrama do Vilhena, informando que não poderia atender ao meu pedido de saque, por não haver verba especial para a construção naquele ano, pelo fato de não ter sido ainda aproveitada a verba de 100 contos votada no ano anterior. Felizmente um telegrama de Dr. Manoel Murtinho comunicava ter o Ministro de Indústria prometido abrir novo crédito de 100 contos.

Eram cada vez maiores as dificuldades com o pessoal. As 81 praças com que haviam sido iniciados os trabalhos estavam reduzidas a 30. O impaludismo e a polinevrite grassavam; houve muitos casos fatais, tornou-se necessário evacuar os mais doentes para a guarnição de Cuiabá. Deram-se, além disso, 17 deserções. Em tão desanimadoras circunstâncias, lembrei-me de meus amigos bororos. Haviam-me eles prometido visitar-me, para assistir à inauguração da Estação de ltiquira. Não me negariam, certamente, o desejado auxílio. Lancei-lhes, pois, um apelo.

Realmente, a 20 de março chegava ao acampamento de Curugugua-bárado (ninho de gavião) o Pagé Báru, acompanhado de mais de 120 índios, entre homens, mulheres e crianças. Recebi-os com a cordialidade habitual e, enquanto não chegava a gente do Chemejera Oarine Ecureu, combinei com o Pagé Báru o trabalho de seus índios - fariam a limpeza da picada, trabalho que a remoção de troncos, deixados pela derrubada, tornava penoso.

Os índios chamavam Rondon de Pagmejera (grande chefe). Os caciques se tratavam por uma titulação menor: Chemejera. Quando os visitava Rondon era saudado efusivamente:Paqui-megera, aregodo! Boe-migera curireu! Nosso grande chefe chegou! O grande chefe bororo!

Uma semana depois chegava um emissário do Chemejera Oarine Ecureu. Estava ele acampado nas proximidades, sem poder prosseguir, por causa de um índio doente, para o qual pedia remédio a Pagmejera. Ao chegar a Meajau haviam os cachorros do índio - da turma de caçada - acuado uma onça. Correu ele a acudir-lhes e travou luta com a fera. Tratava-se, porém, de uma onça preta (adugo choreu) e ‘quem matar adugo choreu ou veado mateiro’, dizem os índios, ‘morrerá dentro de pouco tempo e não de morte natural’. O índio limitou-se, pois, a defender-se ficando bastante ferido. Enviei medicamentos, com as instruções necessárias e, passados alguns dias, chegava ao acampamento de Cugaroboreu (areia preta) onde nos encontravamos, o Chemejera Oarine Ecureu, com 150 índios, entre eles o índio ferido, convalescente e com as feridas cicatrizadas.

Como a turma do Pagé Báru, traziam tudo quanto lhes pertencia, inclusive seus papagaios e araras. Depois dos habituais discursos, longos, cheios de palavras amáveis e expressivas figuras de pensamento, combinei com os dois chefes que seriam seus companheiros utilizados na derrubada e limpeza da picada. A fim de se não romperem os hábitos dos índios, seria, para esse trabalho, uma turma diariamente designada pelos chefes. Forneceria à Comissão alimento para os índios que trabalhassem e suas famílias. Como essas turmas se revezavam, continuariam os índios, de modo geral, entregues às suas ocupações habituais de caça e pesca, para as quais era muito propícia a região. Por outro lado, poupava à Comissão víveres que seriam insuficientes para tanta gente.

Facilmente se sujeitaram os índios ao regime militar e ao trabalho acurado, com a condição de serem comandados pessoalmente por Pagmejera e por seus chefes. ‘Alferes não vê, não entende nada, não sabe - ioroduo bôqua - Pagmejera é que os trata com paciência e bondade e que lhes fala em língua bororo’. É que, durante a reconstrução da linha de Cuiabá ao Araguaia, após a pacificação dos índios do rio das Garças e depois de conseguir deles amizade e confiança, aprendi a sua língua - língua do Bóe. Dei ao Chemejera e ao pagé uma corneta. Assim, ao toque de faxina do acampamento, respondia a dos índios. Dizia o Chemejera: a corneta do acampamento fala ‘braide’, brasileiro, e a corneta que nos deu Pagmejera fala língua bororo.

E seguiam os dois contingentes. Os índios carregavam um quarto de boi e um saco de milho que eram postos a cozer, logo que chegavam ao local de trabalho, em grandes tachos cuidadosamente areados. Assim estava, pelo meio-dia, o alimento perfeitamente cozido. Enquanto os soldados comiam a sua matula (abreviatura de matalotagem) contornavam os índios os grandes tachos de onde retirava cada um o que desejava, para pratos de barro, por eles fabricados, deliciando-se com abundante caldo que bebiam, servindo-se de ato (conchas) existentes no fundo das baías.

Matalotagem: provisão de víveres.

No repouso que se seguia à refeição, recordavam seus antigos feitos ou comentavam os dos antepassados que, naquelas mesmas paragens, tinham enfrentado os civilizados, então seus inimigos, ou repelido, em seus próprios aldeamentos, ataques dos fazendeiros do Piquiri e do São Lourenço. Quando se recolhiam, à tarde, recebiam farinha, carne, milho, rapadura e fumo, para si e suas famílias.

Fora muito bem resolvido o problema de incutir respeito às famílias dos índios que nos vieram auxiliar quando o desânimo ameaçava desorganizar o serviço. Mandei formar o contingente e os índios, com seus chefes. Falei-lhes então com solenidade:

- Ficam os soldados proibidos de ir ao aldeamento, a não ser acompanhados e com autorização. Por outro lado, para evitar que seja essa ordem esquecida, devem os índios agarrar quem a transgredir e trazer a Pagmejera o faltoso, para o merecido castigo. Tudo correu às mil maravilhas até que uma noite despertei com verdadeiro alarido no acampamento. Não tardaram em aparecer, seguidos pela tribo a gritar e gesticular, quatro índios trazendo suspenso, acima das cabeças, um soldado desobediente.

Reunidos, com solenidade, contingente e tribo, exprobrei, com energia, a grave falta do soldado, que atraíra, com sua conduta irregular, tamanha vergonha para o contingente. Como já fosse alta noite, adiei para o dia seguinte o julgamento definitivo, deixando o culposo entregue a uma escolta. Ninguém dormiu. Logo cedo estavam os índios a postos, ansiosos por conhecer a decisão de Pagmejera - que foi a prisão do soldado, no tronco, uma vez que não havia cadeia. Oarine Ecureu exultou.

Infelizmente o incidente se repetiu, quase ao findar a expedição. Pensou um soldado poder penetrar no aldeamento sem ser pressentido. Agarrado, como da primeira vez, fui forçado a agir com maior energia e usar o processo do Conde de Lipe. Ao dirigir-me ao culpado, ante contingente e índios formados, disse:

- Esta surra é a que os índios tinham o direito de lhe aplicar. Penso que, para sua dignidade, é melhor que seja vergastado por ordem de seu próprio comandante.

Houve triste ocorrência a registrar:

Quando o acampamento foi estabelecido, na ponta do contraforte Água Branca, soubemos que havia sarampo em Coxim. Procurei impedir que os índios lá fossem, mas sua aguda curiosidade os levou a transgredir a ordem de Pagmejera e, assim, em breve irrompia violenta epidemia no acampamento. Atacou de preferência os índios, que morreram em grande número porque a febre os levava a se banharem no córrego, para suavizar a alta temperatura, malgrado os esforços do médico; só Pagmejera conseguia, embora a custo, dissuadi-los de tal prática, infelizmente depois de muitos casos fatais.

Tem os bororos muito desenvolvido o culto dos mortos e viam-se, no acampamento, privados de realizar integralmente as cerimônias fúnebres; embora, afastados do contingente, sentiam-se fora de seu ambiente. Foram, todavia, cultuados os mortos. Regavam-lhes abundantemente as sepulturas, para apressar a decomposição e assim, ao partir, foi possível exumar os ossos e guardá-los cuidadosamente em baquités enfeitados com carinho. De regresso à aldeia seriam completados os ritos do culto que mais empolga os bororos.

A mulher do Chemejera Oarine Ecureu, atacada pelo sarampo, ficou cega. Lamentava, em gritos, a cegueira que a privava de ser útil ao marido. Ao mesmo tempo que procurava consolá-lo pela perda da felicidade que haviam desfrutado até aí, esforçava-se por convencê-lo da necessidade de se unir a outra mulher, capaz de o servir, de fazer por ele o que lhe era agora vedado.

Inaugurou-se a Estação telegráfica do Itiquira, com estrondosa festa cívica, a 21 de abril de 1901 - dia de Tiradentes. Houve um banquete aos soldados e aos índios que participaram dos trabalhos e, à noite, realizaram estes formidável, bacorôro, organizado pelo Cacique Oarine e pelo Pagé Báru, apresentando-se muitos dos índios com mantos de pele de onça, como traje de gala.

“esforcei-me para que a sociedade se interessasse de fato pela sorte desses irmãos primitivos, sem cujo auxílio não me teria sido possível levar a cabo as tarefas que me haviam sido confiadas pelas autoridades da República”. (Rondon)

Depois de tão valiosa e eficaz coadjuvação, foram bem merecidas as manifestações de júbilo e reconhecimento que receberam. Um ano inteiro trabalharam os índios conosco, na melhor harmonia, estreitando-se cada vez mais as relações de amizade entre os chefes. Mas o pantanal já estava seco, era época de realizarem as caçadas prediletas - de onça. Assim, a 17 de maio, ao atingir a Comissão a zona de Coxim, encetando nova campanha para a frente, separamo-nos à margem do rio Tauaari com a frase de Oarine Ecureu:

- Aqui fico, bororo não entra em terra de caiamo, terra de terena, guaiacuru, uachiri...Foi tocante a despedida dos índios.

Carregando os baquités que levavam para sua aldeia de Kejare, repetiam, cada um por sua vez:

- Quiaregodo-augai! Quiaregodo-augai ! Hú! Aregodugue... que saudades! que saudades de vocês! Sim! Não mais voltarei.

Partiram a 19; uma turma, a de Oarine Ecureu, seguiu rumo do Piquiri, para onde se encaminhava o traçado da linha, declarando o cacique que voltariam de tempos a tempos, para nos ajudar. A turma do Pagé Báru desceu o Itiquira, em busca do baixo São Lourenço. Com a verba do Almirante Alves de Barros, compramos valiosos presentes para esses bons amigos”.

Fontes: VIVEIROS, Esther de – Rondon conta sua vida - Brasil, Rio de Janeiro,1958 – Livraria São José.

Expedição Roosevelt Rondon

Por Cel Hiram Reis e Silva, 25 de Maio de 2009

Falar de Rondon é abusar dos adjetivos, é falar no superlativo. Encontramos na obra do Major Amílcar Botelho de Magalhães Júnior relatos dos bravos que compunham a Comissão Rondon. Apresentamos ao leitor brasileiro a vivência contagiante de brasilidade de um ícone tão magnífico que a própria história resolveu materializar sua grandeza emprestando seu nome a um estado brasileiro - Rondônia. Este artigo mostra, através de pequenos episódios, sua conduta profissional irretocável que marcou definitivamente a memória do, seu companheiro de viagem, presidente Roosevelt.

- A Comissão

O Governo Brasileiro, atendendo aos desejos manifestados pelo notável e saudoso estadista da América do Norte, organizou uma comissão brasileira para o acompanhar na arrojada travessia do sertão de nossa Pátria e escolheu para chefiar essa comissão ‘the right man to the right place’ - o então Coronel Rondon. À larga visão de um jovem estadista - o Sr. Lauro Mül!er - ministro das Relações Exteriores nessa época, devem-se os extraordinários benefícios que advieram para o nosso País, com a acolhida de tal iniciativa, não só pelo reconhecimento geográfico de uma região até aí desconhecida e pelos estudos de História Natural realizados na zona percorrida, como também pelo valor da propaganda do Brasil no estrangeiro, especialmente na América do Norte, através do livro que Roosevelt publicou sob o título ‘Through the Brasilian Wilderness’, livro que ele foi escrevendo no decorrer da própria expedição.

(...) Logo que Lauro Müller transmitiu o convite a Rondon, este acedeu imediatamente ao appelo do Governo, ponderando em todo caso que estaria pronto ao desempenho da comissão certo de que ‘não se tratava de um mero passeio de sport, mais ou menos perigoso, mas que o Governo ligaria aos intuitos de uma travessia pelo sertão, objetivos científicos de utilidade para nossa Pátria’. Isto indica o ponto de vista elevado em que Rondon se colocava, ao mesmo tempo em que evidencia estar ele a par do que se passava no mundo, não obstante viver na floresta anos seguidos! (O Escritório Central tem sempre a incumbência de lhe transmitir por telegrama o resumo dos principais acontecimentos dentro e fora do País, telegramas a que alguns telegrafistas chamavam - o jornal de Rondon”. (Magalhães)

- A Expedição Roosevelt-Rondon

“Ficou assentado que a expedição Roosevelt estudaria a fauna daquela região e dela forneceria exemplares ao American Museum of Natural History de New York. particularmente interessado em coleções provindas das regiões divisoras das bacias do Amazonas e do Paraguai. As bagagens da expedição foram, assim, rotuladas com os dizeres: ‘Colonel Roosevelt's South American Expedition for the American Museum of Natural History’.

Completariam a expedição dois naturalistas, Cherrie e Leo E. Miller, veteranos das florestas tropicais; o secretário de Roosevelt, Frank Hasper; Jacob Sigg - que acumularia as funções de cozinheiro, enfermeiro e assistente de Father Zahm; Anthony Fiala, antigo explorador dos pólos. Seria este chefe do equipamento que deveria conter, especialmente, tudo o que pudesse defender os expedicionários de insetos e répteis, além de 90 latas de alimento concentrado, cada uma com ração para cinco homens, em um dia, reações compostas e acondicionadas pelo próprio Fiala. O filho do Sr. Roosevelt, o Sr. Kermit, reunir-se-ia à expedição, no Sul do Brasil, onde se achava havia alguns meses”. (Viveiros)

- A crueldade da vida dos trópicos

Entrávamos agora no teatro dos trabalhos por nós iniciados em 1907, tendo-se já descoberto a maior parte desse sertão - ligado por meio das linhas telegráficas, a Santo Antônio do Madeira e a Cuiabá, portanto ao Rio de Janeiro - sertão já estudado e cartografado. A Comissão criada pelo Presidente Afonso Pena abrira à civilização, havia cinco anos, esse sertão que desde 1890 vinha eu percorrendo e estudando à custa de sofrimentos incríveis, suportados com a resignação de quem se consagrou a um ideal, vendo morrer companheiros, amigos devotados, de polinevrite, febres e disenteria, flechados pelos Índios, devorados pelas piranhas, exaustos de cansaço, eu próprio quase perdendo a vida em diversas ocasiões, inclusive a percorrer mais de 3.000 quilômetros, para atingir o Madeira, com 40° de febre.

Diria o Sr. Roosevelt, mais tarde, depois de atravessar a região: ‘é incrível a quantidade de insetos - que mordem, picam, devoram, depositam bernes, causam sofrimentos atrozes; vai além do que se possa imaginar. O patético mito da benfazeja natureza não pode ser aplicado à crueldade da vida dos trópicos”. (Viveiros)

- O head-ball

“Notava ele, com vivo interesse, os objetos de uso dos índios, os tecidos feitos pelas mulheres, os costumes - as mulheres sempre ativas, ocupando-se dos filhos com infinita paciência, carregando-os em faixas largas a tiracolo, inseparáveis de seus fusos que faziam rodopiar desde que tivessem as duas mãos livres, ainda que fosse por um instante, uma para suspender o fio, a outra para fazer girar o irrequieto aparelho.

Teve o Sr. Roosevelt ocasião de assistir a interessante esporte dos parecis - a que chamou head-ball (izigunati, ou matianá-ariti). Uma bola de borracha leve, por eles mesmos fabricada, era jogada com a cabeça, em destros movimentos de pescoço, sem que fosse tocada com mãos ou pés. Era difícil decidir o que mais admirar - se a destreza e força das cabeçadas, se a habilidade com que a bola era aparada. Referindo-se a esse esporte, em seu livro ‘Through the Brazilian Wilderness’, confirmou o Sr. Roosevelt a opinião que expendi em 1911 de que era instituição autóctone sobre a qual nunca lera nem ouvira contar nada que permitisse supor ser praticada por qualquer outro povo do mundo”. (Viveiros)

- O assassinato do Sargento Paixão

“Além da grave afecção palustre que acometeu RooseveIt, cuja vida esteve em sério perigo; além da redução que sofreram as rações normais dos expedicionários; além do trágico naufrágio de uma canoa, do qual salvou-se milagrosamente o destemido Kermit Roosevelt e de que resultou o desaparecimento de um dos canoeiros da expedição; um trágico acontecimento teve por teatro às margens do rio Roosevelt. Roosevelt narra-o com escrupulosa exatidão, transcrevendo em seu livro citado o documento que os expedicionários todos firmaram em testemunho da verdade. Vamos referi-lo sumariamente, para depois comentar a diversidade dos pontos de vista norte-americano e brasileiro na maneira de encarar os fatos. Na travessia de uma serra que tomou o nome do morto, foi assassinado traiçoeiramente por um dos soldados canoeiros o Sargento Paixão, belo tipo de negro, cujas tradições honrosas ao serviço da Comissão Rondon e da pacificação dos silvícolas, angariaram-lhe sempre a simpatia de seu chefe.

Passava-se a carga de montante para jusante da cachoeira e o Sargento Paixão dirigia o pessoal. Cumpridor de seus deveres e das ordens que recebia e que fazia cumprir sem tergiversações, impedira que o soldado subtraísse alimento em conservas. O soldado que era um tipo covarde e perverso, iludindo a vigilância do sargento, apossou-se de uma carabina Winchester carregada, ocultando-se atrás de uma grande árvore no pique do varadouro. Aí aguardou a passagem do sargento e desfechou-lhe um tiro de bala á queima-roupa, matando-o quase instantaneamente. Ouvindo o estampido, correram os expedicionários a verificar do que se tratava e já foram encontrar o sargento nos últimos arquejos da morte. Seguindo a pista do criminoso, floresta dentro, encontrou-se caída ao solo a carabina de que se servira, ao pé de um tronco, onde uma escoriação da casca parecia revelar que o assassino abalara em uma corrida louca, como que perseguido e chicoteado pelo remorso atroz, esbarrando ali com a arma, que lhe escapara das mãos... No desespero da fuga, prosseguira em carreira desordenada, para não perder tempo em apanhar a arma, como se sentisse já quase a estrangula-lo a mão da Justiça!... Não foi possível alcançar o criminoso e voltaram os expedicionários ao acampamento, sob a triste impressão do lamentável acontecimento”. (Magalhães)

- O choque de doutrinas

Em face do assassinato apresentaram-se então em campos opostos a teoria dos americanos e a dos brasileiros. Roosevelt, interprete da primeira, entendia que o assassino devia ser fuzilado, sem mais formalidades, por qualquer dos expedicionários que lhe pusesse os olhos em cima. E argumentava que, estando os expedicionários de ração reduzida, não era lícito dividirem o que restava com um homicida; que este se mostrara indigno de qualquer sacrifício dos companheiros de exploração; que recebe-lo seria aumentar uma boca a comer, sem que se pudesse ter mais confiança nos dois braços para o trabalho. Os brasileiros, porém, entendiam que se deveria acolher o malvado, alimenta-lo e exigir dele o trabalho compensador do alimento a que tinha direito, embora como prisioneiro, à espera do contato com o meio civilizado, para os fins do processo legal a que deveria oportunamente responder.

No dia seguinte ao do assassinato, a expedição perseguiu a descida do rio e quis a fatalidade que o assassino, arrependido, no desespero de quem se sente isolado em pleno deserto, condenado de improviso a representar o papel do homem primitivo da Terra, surgisse a pedir socorro justamente quando passava a canoa de Roosevelt! O 1° ímpeto de Roosevelt foi, como era natural, levar a sua arma ao rosto e apontar... Certo, porem, no seu espírito refletido passou a imagem da teoria brasileira, como um anjo protetor e benigno... e ele retirou a arma, franziu o sobrolho e informou ao médico, que o acompanhava na mesma canoa, não desejar que a embarcação atracasse para receber o assassino. Os seus desejos foram satisfeitos e lá ficou a implorar perdão e piedade, debruçado sobre um galho à beira d’água, a figura sem dúvida asquerosa, mas infeliz, daquele pobre bandido... O desgraçado acompanhou com o olhar a canoa até que esta desapareceu na primeira curva do rio, como quem vê extinguir-se a sua ultima esperança!... O seu olhar desvairado compreendeu então que o abandonavam definitivamente aos azares de uma sorte cruel. Ele merecia incontestavelmente um tremendo castigo, pela hediondez de seu crime, mas justo é refletir que só uma grande dureza de sentimentos aprovaria semelhante solução, nada civilizada. Quando a expedição acampou, a ocorrência foi comunicada ao chefe da Comissão Brasileira. Discutido o caso em presença de todos os expedicionários, Rondon fez sentir a Roosevelt o que a propósito determinava a lei brasileira e que em face da nossa legislação o seu dever era aprisionar o assassino e conduzi-lo consigo: aos juízes competiria sentenciar-lhe o castigo. Imediatamente Roosevelt responde-lhe: ‘Pois bem, Sr. Coronel Rondon, se a lei de seu país é esta, eu estarei pronto a cumpri-la!’ Nenhuma prova mais cabal poderia Roosevelt ter dado da superioridade de seu espírito!

Rondon determinou então a permanência de um dia no novo acampamento e organizou uma patrulha que subiu o rio em busca do homicida, e que o devia prender, sem maltratar. Essa patrulha, porém, subiu o rio até o ponto em que fora visto o assassino, foi ainda muito além, rebuscou a mata em todas as direções, deu tiros de sinal, mas não conseguiu deparar com o criminoso. Este sem dúvida temera apresentar-se, supondo que o quisessem matar! À noite recolheu-se a patrulha e ao dia seguinte prosseguiu a expedição águas abaixo, sem que nunca mais se tivesse notícias do assassino. Teria sido comido pelas onças? Teria encontrado índios que o acolheram? Teria morrido de fome? Ninguém nunca o saberá talvez; a sua vida ficou envolta no mais profundo mistério e faz-me de vez em quando pensar em todas essas peripécias, arrastando-me a imaginação a uma infinidade de hipóteses”. (Magalhães)

- Uma Valquíria Brasileira

Curioso episódio também foi observado em relação a mulher de um dos soldados regionais do destacamento que acompanhou Roosevelt, desde Tapirapoan (rio Sepetuba) ás margens do rio da Dúvida. Grávida já de nove meses, essa mulher acompanhou a pé todas as marchas da expedição, por terra, o que era motivo para admiração geral. Aconselhada em Tapirapoan a alojar-se ali para seguir depois de dar a luz, recusou-se peremptoriamente e declarou que estava acostumada a andar no sertão nesse estado de gravidez, sem se cansar. A convicção de suas afirmativas, levou o comandante do destacamento à tolerância de a deixar seguir, embora contra o voto do médico. Pois bem, essa mulher extraordinária, não só marchou diariamente 4 a 5 léguas a pé, como também só interrompeu a marcha um dia (24 horas) para dar a luz. Ao dia seguinte do parto prosseguia a marcha a pé carregando o filho ao colo”. (Magalhães)

- Uma Valquíria Brasileira

Às 11 horas, o Dunstan, onde viajava a Comissão Americana. levantava âncora. rumo ao oceano... ainda o acompanhamos por algum tempo, a bordo do aviso Cidade de Manaus. Afinal, por entre as névoas da saudade, que já envolvia nossos corações, lançamos, ao espaço, as últimas despedidas, erguendo vivas ao Chefe da Expedição Americana e à grande República que tinha a glória de o ter por filho.

Às 23 horas voltava eu, no Cidade de Manaus, à Capital do Amazonas de onde segui pelo Madeira acima, e, depois, pelo Jamari, de onde demandaria a estação de Barão de Melgaço, a fim de continuar os meus trabalhos de construção da Linha Telegráfica de Cuiabá ao Madeira.

Escreveu o Sr. Roosevelt o volumoso livro ‘Through the Brazilian Wilderness’, descrição de sua viagem. Foi esse livro traduzido, tendo eu pedido prévia autorização à Viúva. Essa delicadeza muito a sensibilizou e a autorização veio assinada, não só por ela, como por todos os filhos e pelo editor.

Quando o Sr. Roosevelt foi à Europa, para fazer conferências sobre sua excursão, fui eu também convidado. Nessa ocasião, disse um português, a propósito do rio da Dúvida, que os portugueses já lhe conheciam a barra, ao que retrucou o Sr. Roosevelt:

- Só a barra era conhecida, isto é, alguns poucos quilômetros dos seus 1500 quilômetros de curso”. (Viveiros)

Fonte:

MAGALHÃES, Major Amílcar Botelho de – Impressões da Comissão Rondon – Brasil, Rio de Janeiro,1921 – Editora Brasiliana. VIVEIROS, Esther de – Rondon conta sua vida - Brasil, Rio de Janeiro,1958 – Livraria São José.

Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva

Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)

Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB)

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS)

Telefone:- (51) 3331 6265

Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br

E-mail: hiramrs@terra.com.br




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