quarta-feira, 15 de abril de 2009


Charles Marie de La Condamine e o ‘Rio Negro’

Por Cel Eng R/1 Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 16 de Abril de 2009
Olha esta água, que é negra como tinta.
Posta nas mãos, é alva que faz gosto;
Dá por visto o nanquim com que se pinta,
Nos olhos, a paisagem de um desgosto.
(Quintino Cunha)

Estamos iniciando o planejamento da 2ª fase do Projeto-Aventura ‘Desafiando o Rio-Mar’. Com o objetivo de iniciar uma metódica preparação intelectual sobre nossa próxima jornada, no rio Negro, no final do ano, vamos publicar uma série de artigos que visam apresentar aos leitores um pouco, dos mistérios e encantos dessa jóia de águas negras. A descida do ‘Rio Negro’, de caiaque, é, também, uma homenagem ao importante escritor da literatura brasileira, Euclides da Cunha, no ano do centenário da sua morte. Euclides foi covardemente assassinado em 15 de agosto de 1909, aos 43 anos de idade.

- Projeto-Aventura ‘Desafiando o Rio Mar’ - 2ª Fase

Percorremos todo o Rio Solimões, de Tabatinga a Manaus, num percurso que superou os 1700 quilômetros, tendo em vista a exploração de afluentes, paranás, furos e lagos ao longo de sua calha. Não atingimos o Mar, como o próprio nome do projeto indica, mas resolvemos que, antes de atingi-lo, devemos percorrer o quarto maior rio brasileiro em vazão: o Rio Negro. Estamos na fase de planejamento e treinamento sem uma data marcada para o início da jornada, tendo em vista que ainda não dispormos dos recursos necessários, da ordem de R$30.000,00 para a execução do projeto.

- Charles Marie de La Condamine

Charles Marie de La Condamine, cientista e explorador francês, nasceu em Paris, em 28 de janeiro de 1701. Realizou diversas viagens ao Norte da África, Oriente Médio e América do Sul. Foi o primeiro cientista a descer o rio Amazonas, e suas publicações sobre a geografia, fauna e flora da bacia amazônica despertaram o interesse da comunidade científica pelo seu estudo. Condamine é responsável pelo primeiro relato científico sobre a existência do canal do Cassiquiare.

- Preparativos para a viagem à América

Fazendo parte da esquadra de Duguay-Touin, em 1731, visitou a costa do Norte da África e do Oriente Médio. Retornou à França depois de ter coletado informações sobre diversas áreas do conhecimento: geografia, metereologia, cultura, arqueologia e etnografia dos países visitados. Empolgado com a intenção da Academia Francesa de enviar cientistas ao Peru para realizarem medições da linha equatorial, dedicou-se, tenazmente, aos estudos astronômicos e geodésicos. Seu esforço foi recompensado com a nomeação, juntamente com Bouguer e Louis Godin, dentre outros.

- Viagem à América

A expedição partiu de La Rochelle, no dia 16 de maio de 1735, atravessou o istmo do Panamá e atingiu Guaiaquil. O sucesso da expedição foi comprometido quando a ajuda de custo, prometida pela Academia Francesa, não chegou e o relacionamento entre os cientistas foi abalado com a recusa de Godin em dar conhecimento do resultado de suas pesquisas aos demais. Estes problemas somados a questões administrativas com autoridades peruanas, quase levaram ao fracasso da missão. Condamine assumiu a direção da expedição e, graças às suas qualidades liderança e recursos financeiros particulares conseguiu levar o empreendimento a bom termo.

Os cientistas retornaram por caminhos diversos como relata o próprio Condamine: “Para multiplicar as ocasiões de observar, combináramos desde muito tempo M. Godin, M. Bouguer e eu, voltar por caminhos diferentes. Determinei escolher um quase ignorado, e estava seguro de que ninguém mo invejaria; era o do rio das Amazonas, que atravessa todo o continente da América meridional, do Ocidente ao Levante, e passa com razão por ser o maior curso do mundo”.

Suas impressões, relatadas em 1751, reportavam observações geodésicas, físicas, astronômicas e etnográficas. Consegui comprovar a influência da temperatura sobre a velocidade do som. Levou para a Europa a quinina e o cauxo, e relatou como os portugueses aprenderam, com os Omáguas, a fabricar artefatos de latéx.

- Condamine no Rio Negro

No dia 23 entramos no rio Negro, outro mar de água doce que o Amazonas recebe pelo norte. A carta do Padre Fritz (que nunca entrou nesse rio), e a última carta da América de Delisle, feita conforme a do Padre Fritz, fazem correr este rio do norte para o sul, ao passo que é certo, pelo relato de quantos o remontaram, que ele provém do oeste, e que corre para o este, inclinando-se um pouco para o sul. Testemunhei por meus próprios olhos que essa é a sua direção várias léguas acima de sua desembocadura no Amazonas, onde o rio Negro entra tão paralelamente que, sem a transparência das águas que se chamam precisamente ‘rio Negro’, seria tomado por um braço do próprio Amazonas, separado por alguma ilha.

Subimos pelo rio Negro duas léguas, até o forte que os portugueses aí levantaram na margem setentrional, no lugar mais estreito, que mede 1.203 toesas (2.344,041m), e onde observei 03°09’ de latitude. É esse o primeiro estabelecimento português que se encontra ao norte do rio das Amazonas, quando por ele descemos. O rio Negro é praticado pelos portugueses há mais de um século, e eles aí fazem um grande comércio de escravos. Há aí sempre um destacamento da guarnição do Pará, para manter o respeito das nações índias que lá habitam, e para favorecer o comércio dos escravos nos limites prescritos pelas leis de Portugal; e todos os anos este acampamento ambulante, a que se dá o nome de ‘tropa de resgate’, penetra para diante pelas terras. O capitão comandante do Forte do Rio Negro estava ausente quando aí aportamos: não me demorei aí mais de vinte e quatro horas. Toda a parte descoberta das margens do rio Negro é povoada por missões portuguesas, dos mesmos religiosos de Monte Carmelo, que encontráramos descendo o Amazonas, desde que deixamos as missões espanholas. Subindo quinze dias, três semanas ou mais, pelo rio Negro, achamo-lo ainda mais largo que na sua boca, em virtude de grande número de ilhas e lagos que forma. Em todo este intervalo o terreno das margens é elevado, e nunca se vê inundado: o mato aí é menos bravo, e o país é completamente diferente das margens amazônicas.

- O Cassiquiare

“Soubemos, no Forte do Rio Negro, particularidades sobre a comunicação deste rio com o Orenoco e, por conseguinte deste último com o Amazonas. Não aduzirei a enumeração das diversas provas de tal comunicação, provas que eu colhi cuidadosamente em minha rota; a mais decisiva era então o testemunho insuspeito de uma índia das missões espanholas, das margens do Orenoco, com quem tinha falado e que chegou de canoa ao Pará, vindo daí. Todas essas provas tornam-se inúteis para o futuro, pois cedem lugar a uma última.

Acabo de saber por uma carta escrita do Pará ao reverendo Padre João Ferreira, reitor do Colégio dos Jesuítas, que os portugueses do acampamento ambulante do rio Negro (no ano último de 1744), tendo subido de rio em rio, encontraram o superior dos jesuítas das missões espanholas das margens do Orenoco, e com ele voltaram pelo mesmo caminho, e sem desembarcar, até o mesmo acampamento: o que estabelece a comunicação dos dois rios. Este fato não pode mais hoje ser posto em dúvida; é embalde que, para lançar nele alguma incerteza, se reclamaria a autoridade do autor recente do Orenoco Ilustrado, o qual, depois de ter sido longo tempo missionário das margens do referido rio, considerava ainda em 1741 essa comunicação impossível. Ele ignorava então, sem dúvida, que suas próprias missivas ao comandante português e ao esmoler da tropa de resgate chegavam de sua missão do Orenoco por esse mesmo caminho, reputado imaginário, até o Pará, onde as vi entre as mãos do governador; mas este autor está hoje plenamente desenganado a este respeito, como eu soube por M. Bouguer, que o viu no ano passado em Cartagena da América. A comunicação do Orenoco e do Amazonas, recentemente verificada, pode passar por uma descoberta em geografia, tanto mais que essa junção, embora marcada sem nenhum equívoco nas antigas cartas, foi suprimida nas novas pelos geógrafos modernos, como se de geral concerto, e tratado como quimérica pelos que pareciam estar melhor informados da realidade.

Esta não é provavelmente a primeira vez que a verossimilhança e as conjeturas puramente plausíveis vencem os fatos atestados pelas relações de viagens, e que o espírito crítico, levado muito longe, chega a negar decisivamente aquilo de que se podia ainda apenas duvidar. Mas como se faz essa comunicação do Orenoco com o Amazonas? Um mapa minucioso do rio Negro, que teremos quando aprouver à corte portuguesa, poderia instruir-se a este respeito. Enquanto espero, eis a idéia que formulei, comparando as diversas noções que recolhi no decurso de minha viagem, em todas as relações, memórias e cartas, quer impressas quer manuscritas, que pude descobrir e consultar, ora nos lugares mesmos por onde andei, ora após minha volta, e sobretudo nos esboços de cartas que freqüentemente traçamos meu companheiro de viagem e eu, sob os olhos dos missionários, segundo suas exposições, e as dos navegadores mais inteligentes entre os que tinham subido e descido pelo Amazonas e pelo rio Negro”.

- Manoa del Dorado

“É nesta ilha, a maior do mundo conhecida, ou antes é nesta nova Mesopotâmia, formada pelo Amazonas e pelo Orenoco, ligados entre si pelo rio Negro, que se procurou longo tempo o suposto lado dourado de Parima, e a cidade imaginária de Manoa del Dorado, procura que custou a vida a tantas pessoas, e entre outras, Walter Raleigh, famoso navegador, e um dos mais belos espíritos da Inglaterra, história trágica e assaz conhecida. Pode-se ver pelas expressões do Padre d’Acuña, que ao seu tempo ainda vivia a gente embalada por essa bela quimera. Peço ainda permissão para um pequeno pormenor geográfico, que tocava muito profundamente o meu assunto para que eu o olvide, e que pode servir para descobrir a origem de um romance a que a sede do ouro pôde emprestar alguns visos de veracidade: uma cidade cujos tetos e muralhas andavam cobertos de lâminas de ouro, um lago cujas areias eram do mesmo metal. É mister recordar aqui o que foi referido acima a respeito do rio do Ouro, e os fatos já citados, encontrados nas relações dos padres d’Acuña e Fritz”.

- Os Manaus

“Os manaus, segundo este último autor, eram uma nação belicosa, temida por todos os vizinhos. Ela resistiu longamente às armas dos portugueses, de quem hoje é amiga: há vários manaus hoje fixados nos aldeamentos e missões marginais do rio Negro. Alguns fazem ainda incursões pelas terras de nações selvagens, e os portugueses se servem deles para o comércio de escravos. Foram dois desses índios manaus que penetraram até o Orenoco, e roubaram e venderam aos portugueses a índia cristã de que já falei. O Padre Fritz diz expressamente em seu jornal que esses manaus, que ele viu traficar com os índios das margens do Amazonas, e que tiravam ouro do Iquiari, tinham suas habitações no chamado Jurubech. (...)

Vê-se na carta do Padre Fritz uma grande povoação manaus na mesma região; ele a denomina Jenefiti. Não pude obter dela notícias positivas, o que não tem nada de extraordinário, desde que a nação dos manaus foi transplantada e dispersada: mas é muito possível que da capital dos manaus se haja forjado a cidade de Manoa. Não me detenho em querer ver em Maraí, ou Paraí, a etimologia de Parima. Eu me atenho aos fatos. Os manaus tiveram neste cantão uma população considerável; eles eram vizinhos dum grande lago, e até de muitos lagos grandes, muito vulgares em países baixos, sujeitos a inundações. Os manaus garimpavam o ouro do Iquiari, e dele faziam pequenas palhetas. Eis aí fatos verdadeiros, que puderam, graças a exagerações, dar motivo à fábula da cidade de Manoa, e do lago Dourado. Se se descobre que há ainda bastante distância entre as pequeninas lâminas de ouro dos manaus e os tetos d’ouro da cidade de Manoa, e que não há distância menor entre as palhetas desse metal, carreadas das minas pelas águas do Iquiari, e as areias d’ouro do Parima, não se pode negar que por um lado a avidez e a preocupação dos europeus, que queriam por tudo achar o que buscavam, e por outro o gênio mentiroso e exagerador dos índios, interessados em afastar hóspedes incômodos, tenham podido facilmente aproximar objetos tão distantes na aparência, alterá-los e desfigurálos, a ponto de torná-los irreconhecíveis. A história das descobertas do Novo Mundo fornece mais de um exemplo de semelhantes metáforas.

Tenho entre as mãos um extrato de diário e um esboço de carta do viajante, provavelmente o mais moderno dos que já empreenderam esta descoberta. Foi-me comunicado no Pará, pelo próprio autor, que no ano de 1740 subiu o rio Essequibo, cuja foz no oceano está entre o Suriname e o Orenoco. Depois de ter atravessado lagos e vastos campos, ora arrastando, ora carregando a canoa, com trabalhos e fadigas incríveis, e sem ter nada achado do que buscava, chegou enfim a um rio que corre para o sul, e pelo que desceu para o rio Negro, chegando do norte. Os portugueses lhe chamaram rio Branco, e os holandeses de Essequibo o denominaram Parima; sem dúvida acreditaram que ele conduzia ao lago Parima, tal como se fez em Caiena com um outro rio, por motivo semelhante. De resto crer-se-á que o lago Parima é um dos que atravessou o viajante que acabo de citar; mas ele achou tão pouca semelhança com o retrato que se tem feito do lago Dourado, que me parece ficou muito longe de aplaudir semelhante conjetura.

- Condamine e as ‘Amazonas’

No decurso de nossa navegação, indagamos por toda parte dos índios das diversas nações, e com grande cuidado o fizemos, se tinham algum conhecimento das mulheres belicosas que Orellana pretendia ter encontrado e combatido, e se era certo que elas se conservavam fora do comércio dos homens, não os recebendo entre si senão uma vez por ano, como nos refere o Padre d’Acuña na sua relação, onde o assunto merece ser lido pela singularidade. Todos nos disseram que ouviram falar disso por seus pais, e juntaram mil particularidades longas demasiado para serem repetidas, e tudo tendente a confirmar que houve no continente uma república de mulheres solitárias, que se retiraram para as bandas do norte, no interior das terras, pelo rio Negro, ou por outro que pelo mesmo lado vem ter ao Maranhão.

(...) que ele chegou a falar com quatro dentre elas; e que uma trazia uma criança ao peito. Ele nos disse o nome de cada uma, e ajuntou que, partindo do Cuchivara, elas atravessaram o grande rio, e tomaram o rumo do rio Negro. Omito certos pormenores pouco verossímeis, mas que em nada importam para o essencial da coisa.

(...) Um índio habitante de Mortigura, missão vizinha do Pará, ofereceu-se a mostrar-me um rio por onde se podia remontar, segundo ele, até pouca distância do país atualmente habitado, dizia o mesmo, pelas amazonas. Tal rio se chama Irijó, e depois passei pela sua embocadura, entre Macapá e o cabo Norte. Conforme o reconto do mesmo sujeito, no ponto em que esse rio deixa de ser navegável por causa dos saltos, há-se de, para penetrar no País das Amazonas, caminhar vários dias pelos bosques da margem do oeste, e atravessar um país montanhoso. Um velho soldado da guarnição de Caiena, habitando agora próximo dos saltos do rio Oiapoque, assegurou-me que num destacamento em que ele estava, destacamento enviado pelas terras para reconhecer o país, em 1726, havia penetrado até os amicouanes, nação de largas orelhas que vive acima das nascentes do Oiapoque, e perto das de outro rio afluente do Amazonas; e que aí ele vira nos pescoços das mulheres dessas mesmas pedras verdes de que acabo de falar; e que tendo perguntado a esses índios donde as tiravam, obteve como resposta que provinham das mulheres ‘que não tinham marido’, cujas terras demoravam a sete ou oito dias de jornada para o lado do ocidente.

(...) Entretanto, já se tratava das amazonas entre os índios do interior, antes que os espanhóis aí houvessem penetrado, e delas se fez menção entre povos que não tinham jamais visto europeus. É o que prova o conselho dado pelo cacique a Orellana, bem como às suas gentes, e ainda as tradições referidas pelo Padre d’Acuña e pelo Padre Baraze. É crível que selvagens de lugares distantes fossem acordes em imaginar, sem qualquer fundamento, o mesmo fato, e que esta pretensa fábula fosse adotada tão uniforme e universalmente em Mainas, no Pará, em Caiena, e em Venezuela, entre tantas nações que não se entendem absolutamente, e que não têm nenhuma comunicação? De resto, não fiz enumeração de todos os autores e viajantes de tantas nações da Europa, que há mais de dois séculos vêm afirmando a existência das amazonas americanas, e alguns pretendem havê-las visto.

* Fontes:

LA CONDAMINE, C.M. - Viagem na América meridional descendo o rio das Amazonas - Brasil - DF, 2000 - Senado Federal.
LA CONDAMINE, C.M. - Viagem pelo Amazonas, 1735-1745 - Brasil - Rio de Janeiro, 1992 - Editora Nova Fronteira.

Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)
Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB) 
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS) 
Rua Dona Eugênia, 1227
90630 150 - Petrópolis - Porto Alegre - RS
Telefone:- (51) 3331 6265
E-mail: hiramrs@terra.com.br

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