Sr. Joaquim Martins, Patriarca da RDS Mamirauá
Por Cel Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 22 de Junho de 2009.
Na minha descida pelo Rio Solimões, de caiaque, conheci diversas pessoas fantásticas cuja lembrança guardarei, eternamente, com muito carinho. Uma delas foi a do Sr. Joaquim Martins, da Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá.
- RDS - Pequeno histórico
Até a década de 80, o macaco branco de cara vermelha, conhecido como uacari, só havia sido descrito no século XIX pelo naturalista inglês Henry Walter Bates. Em março de 1983, um biólogo paraense chamado José Márcio Ayres parte de Tefé no barco Gaivota, financiado por seu pai, para pesquisar os uacaris. Depois de diversas tentativas frustradas, Ayres aportou o Gaivota na Boca do Mamirauá. Após anos estudando os curiosos primatas, seu estudo foi publicado em 1986 e, em 1990, mais de um milhão de hectares da várzea, incluindo a área onde havia desenvolvido seu estudo, foram declarados pelo governo estadual como Estação Ecológica Mamirauá. Em 1992, foi criada a sociedade civil Mamirauá, com o intuito de coordenar pesquisas e trabalhos de extensão na reserva e, em 1996, a ONG publicou seu plano de manejo, visando o uso sustentável dos recursos naturais e o policiamento dos recantos mais longínquos da reserva. Ato contínuo, o governo estadual consagra estes princípios, criando a Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá.
- A Várzea
Em decorrência das inundações periódicas, o rio Solimões, rico em nutrientes, proporciona o habitat ideal para a reprodução e berçário para mais das 300 espécies de peixes da reserva. Por outro lado, o crescimento desordenado dos grandes centros urbanos na Amazônia e a consequente procura por proteína barata, tornam a opção pela pesca nos lagos e rios uma ameaça, tanto ao ecossistema de Mamirauá como de todos os outros.
- Pesquisa científica
O governo brasileiro, através do Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, e de doadores internacionais, financia projetos como o de estudo ecológico do pirarucu, a rádio-telemetria dos botos e do jacaré-açu, dentre outros, tornando o Mamirauá um centro de excelência para estudos relativos à floresta alagada.
- Extensão
Junto à população ribeirinha são desenvolvidos projetos de saúde, educação ambiental e técnicas agrícolas, com a experimentação de novas técnicas produtivas de árvores frutíferas, planos de manejo madeireiro sustentável e artesanato tradicional envolvendo cerâmica e cestaria, além da operação de uma rádio comunitária. Reputamos a RDS Mamirauá como modelo, tendo em vista o envolvimento democrático da população ribeirinha na absorção e aplicação de novas técnicas ambientais, no controle e fiscalização dos recursos naturais da reserva e a modelar ação norteadora do Instituto como organização científica de excelência, apresentando novas alternativas sustentáveis. A corrupção que verificamos em toda a nação, nos órgãos encarregados de fiscalizar os atos lesivos ao patrimônio genético e ambiental do país, mostra ser Mamirauá um modelo que deu certo e que está em constante reformulação e aperfeiçoamento.
- Senhor Joaquim Martins
Na minha chegada à Boca do Mamirauá (27 de dezembro de 2008) conheci o decano da Comunidade e um dos alicerces do Projeto Mamirauá. O senhor Joaquim, muito lúcido e falante nos seus mais de setenta anos bem vividos, contou-nos uma série de ‘causos’ e piadas regionais. Depois de providenciar que um de seus filhos nos acompanhasse até o Flutuante Mamirauá, onde ficaríamos hospedados. Seu Joaquim ficou de nos visitar na segunda-feira para que o acompanhássemos em uma pescaria.
O líder e patriarca da Comunidade da Boca do Mamirauá, como havia prometido, chegou cedo na segunda-feira (29 de dezembro de 2008), acompanhado do ‘Lulinha’, um de seus 38 netos. A chuva que começara à noite só parou por volta das 10h00. O Senhor Joaquim ficou proseando e contando suas histórias. É impressionante o vigor físico, a lucidez deste ribeirinho que é um dos esteios da RDS Mamirauá. Quando a chuva diminuiu, acompanhei-o na pescaria.
Seu Joaquim, leve e silenciosamente, afundava o remo na água e manobrava a canoa por entre vegetações aquáticas do cano do Mamirauá. Viu, ou sentiu, o bululu e o leve movimento das águas (siriringa) e, sem pressa, pressentiu a direção seguida pelo cardume de aruanãs, ergueu o braço empunhando o arpão de bico pela haste e num impulso rápido e preciso lançou o arpão a alguns palmos à frente da leve ondulação na superfície. Seu Joaquim sabia que a ‘siriringa’ era provocada pelo cardume que nadava próximo a superfície. A haste fincou o bico de ferro em forma de flecha no corpo da aruanã mantendo preso o formoso peixe às farpas do bico de ferro do arpão que se soltou da haste. O animal foi recolhido com a mesma destreza com que fora arpoado.
Bululu - pipocar de borbulhas.
Siriringa - insignificante movimento da superfície da água provocado pelo deslocamento dos grandes peixes nas camadas inferiores.
Arpão de bico - formado por uma haste de madeira nobre de mais de dois metros de comprimento e, em cuja ponta é adaptado um bico de ferro em forma de ponta de flecha. A ponta do bico tem aproximadamente três milímetros de raio e vai aumentando o seu diâmetro para cerca de sete milímetros até o chamado ‘alvado’ onde é engatada a ponta inferior da haste. Ao bico é amarrada uma corda de fibra vegetal de mais de uma dezena de metros e a outra ponta da corda é amarrada na popa do barco. Depois de arpoado o peixe o bico se solta da haste e esta faz o papel de bóia; o pescador pode conduzi-lo, depois de cansado, como se faz com uma linha de pesca.
Novamente, atento aos mais leves movimentos na água ele se aproximou de um grande aglomerado de capim-memeca com a intenção de pescar um tambaqui. Usando um ‘enganador’, um tosco caniço com um peso amarrado na ponta da linha, batia na água simulando a queda da ‘arati’, frutinha que é o objeto de desejo do saboroso peixe. Na outra mão usava, num igualmente tosco caniço, a frágil ‘arati’ como isca. Se usasse a ‘arati’ para atrair o peixe ela se desprenderia do anzol. Não demorou muito para que um grande tambaqui fosse puxado para a canoa pelo seu Joaquim. A destreza no arpoar e o domínio das técnicas de pescaria justificam a fama de grande pescador que ele tem. Retornamos ao Flutuante e ele nos presenteou com a aruanã e metade do tambaqui que foi assado pelo zelador Ivo e saboreado no almoço.
Guardarei sempre, na lembrança, a imagem daquele sábio, rijo e alegre ribeirinho e dos ensinamentos que ele me transmitiu. A leitura sutil que ele fazia da flora e da fauna ou dos sutis movimentos das águas foi uma lição que guardaremos com carinho eternamente.
Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)
Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS)
Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br
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