Cacique Tikuna João Farias Filho
Por Cel Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 21 de Junho de 2009.
Na minha descida pelo Rio Solimões, de caiaque, conheci diversas pessoas fantásticas cuja lembrança guardarei, eternamente, com muito carinho. Uma delas foi a do Cacique Tikuna João, da Comunidade de Feijoal. O cacique João é um líder nato e exerce seu comando com muita sabedoria e bom senso. Lúcido e inteligente está a par dos acontecimentos nacionais e internacionais sobre os quais discorre com fluência e conhecimento impressionantes.
- Tikunas
Meu contato com os bravos e altivos Tikunas foi extremamente marcante e por isso mesmo dediquei grande parte de minhas pesquisas e labor procurando retratar estes guerreiros que representam a maior e uma das mais belas etnias indígenas brasileiras. Ao contrário de deletérios grupos que se autodenominam como nações, os Tikunas são cidadãos brasileiros com direito de escolher seus representantes políticos bem como as lideranças de suas Comunidades pelo voto. O apharteid que se verifica, sobretudo, em Roraima hostilizando os membros mestiços do grupo não se verifica entre os Tikunas e a sadia miscigenação pode ser exemplificada pela origem dos próprios caciques; João, da Comunidade de Feijoal, e de seu irmão de Belém do Solimões que embora tenham sangue Tikuna por parte de mãe tem pai paraense.
- O veneno Tikuna
Os Tikunas fabricavam um veneno de efeito mortífero fulminante conhecido como ‘curare’ e que foi chamado pelos tapuias de ‘Tikuna’, nome que passou a designá-los. Charles-Marie de La Condamine, primeiro cientista francês a participar de uma expedição francesa à Amazônia, enviado, em 1735, pela Academia Francesa de Ciências para calcular o diâmetro da terra no equador. O cientista, em 1743, desceu o Amazonas e fez diversas anotações sobre a flora, fauna e costumes dos nativos. Ele afirma, no seu livro, que testou, com sucesso, o veneno fabricado pelos Tikunas em galinhas durante sua estada em Caiena, na Guiana Francesa.
A respeito do veneno, Condamine, relata que:
“Esse veneno é um extrato feito por meio do fogo, do suco de diversas plantas, e particularmente de certos cipós. Asseguram que entram mais de trinta espécies de ervas e raízes no veneno feito pelos Tikunas, que é aquele que experimentei, e que é o mais estimado entre os diversos conhecidos ao longo do rio Amazonas. Os índios o compõem sempre da mesma maneira, e seguem sem discrepar o processo que aprenderam de seus antepassados, tão escrupulosamente quanto os farmacêuticos entre nós para a composição da Teriaga de Andrômaco, sem omitir o menor ingrediente prescrito; sem embargo de que provavelmente essa grande multiplicidade não seja necessária no veneno índio, como no antídoto da Europa”.
Os Tikunas são hoje o maior grupo indígena do Brasil com mais de 32.000 pessoas. São encontrados no estado do Amazonas, ao longo do rio Solimões em terras dos municípios de Benjamin Constant, Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá, Fonte Boa, Anamã e Beruri e, fora do Brasil, na Colômbia e no Peru. Os Tikunas falam uma língua isolada e uma de suas características é de fazer uso de diferentes alturas na voz, o que a classifica como uma língua tonal. Os Tikunas estão organizados em clãs agrupados em metades, que regulam os casamentos. Os membros de uma metade devem casar-se com pessoas da metade oposta, sendo que os filhos herdam o clã do pai. Em uma das metades estão agrupados os clãs com nomes de aves - mutum, maguari, arara, japó etc. Na outra metade estão os clãs que possuem nomes de plantas e de animais, como o buriti, jenipapo, avaí, onça, saúva.
- Comunidade Feijoal
Saímos de Tabatinga às 07h30 rumo a Feijoal no dia 1º de Dezembro de 2008. Depois de navegarmos durante 4 horas comecei a indagar dos nativos amigos a localização da Escola Marechal Rondon da Comunidade Feijoal. A população indígena Tikuna da área se mostrava desconfiada com minha presença e as informações quanto à localização da Comunidade não eram, absolutamente, confiáveis. Conversando, mais tarde, com os policiais federais, da Base Anzol, eles nos informaram que os traficantes colombianos, procurando passar despercebidos, têm lançado mão de pequenas embarcações, a remo, para suas atividades ilícitas. Só comecei a ter algum êxito quando perguntei pelo professor Henrique, cujo nome tinha sido indicado pelo meu amigo professor Sebastião Rocha de Sousa da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), em Tabatinga. No seu dialeto, alguns jovens, tentavam me indicar o rumo a ser tomado. O contato que havia feito com o administrador regional da Funai em Tabatinga, o senhor Davi Félix Cecílio, foi de muita valia. Ao chegar procurei o Professor Henrique, que já tinha sido informado de nossa vinda pelo amigo Davi, o professor conseguiu que ficássemos instalados no posto da Funai, com direito a ar condicionado e banheiro.
- Entrevista com as lideranças
Tomamos um bom banho e entrevistei as autoridades da Comunidade, o cacique João, o encarregado da Funai, senhor Arsênio, o professor Henrique, dentre outros. Durante as entrevistas saboreávamos a mapati, chamada de ‘uva da Amazônia’.
Mapati (pourouma cecropiifolia) - também conhecida como ‘Embaúba de vinho’, os frutos maduros são muito apreciados pelo homem e pela fauna. O fruto maduro é preto, a casca tomentosa, a polpa esbranquiçada é doce e saborosa.
Os problemas relatados foram como era de se esperar, referentes à segurança, em decorrência da ação de traficantes e exploradores da mata nativa dentro da área da reserva, à saúde em decorrência da falta de medicação no posto da Funasa e à educação tendo em vista a dificuldade do acesso ao Ensino Superior para os concludentes do 3º ano do Ensino Médio. A principal reivindicação era de uma casa de apoio em Tabatinga onde pudessem ficar alojados quando estivessem cursando a faculdade na UEA, uma reivindicação justa de qualquer sociedade medianamente organizada. Os pontos fortes que observei, junto aos Tikunas de Feijoal, foram o respeito e a confiança depositada nas suas lideranças, a limpeza da Comunidade, o sistema de refrigeração na escola de Ensino Fundamental Marechal Rondon, a água tratada e a energia elétrica.
- Um convite irrecusável
O cacique João Farias Filho me convidou insistentemente a permanecer mais um dia na sua Comunidade. Concordei, após comunicar à equipe que isso exigiria de nós um esforço especial no percurso de Belém do Solimões a Santa Rita de Weil já que para manter a programação teríamos de suprimir o pernoite na Comunidade de Santa Maria. Na manhã de 02 de dezembro sai com o cacique para conhecer a Comunidade quando tive a oportunidade de conversar com alguns alunos do Ensino Médio que relataram emocionados, em português e na língua nativa, suas angústias ante a impossibilidade de dar continuidade aos estudos.
Logo, em seguida, chegaram meus parceiros e seguimos com o cacique e outras lideranças ao sítio do Arsênio onde tivemos a oportunidade de provar algumas das iguarias locais, como o ingá e a mapati, observar os frutos de cupuaçu e cupuí, ainda fora da época da colheita, e alimentar os tambaquis e outros peixes no lago artificial onde são criados.
Ingá (árvore da subfamília mimosoideae) - comum nas margens de rios e lagos, é muito procurado pelo homem e pela fauna por suas sementes envolvidas pela sarcotesta branca e adocicada.
Cupuaçu (theobroma grandiflorum) - é um fruto parente próximo do cacaueiro. A árvore é conhecida como cupuaçuzeiro, cupuaçueiro ou cupu. Os frutos tem a forma esférica ou ovóide e medem até 25 cm de comprimento, tendo casca dura e lisa, de coloração castanho-escura. As sementes ficam envoltas por uma polpa branca, ácida e aromática.
Cupuí (theobroma subincanum) - parente do cupuaçu verdadeiro ao qual se assemelha em aparência é, entretanto, bem menor e, ainda que possua polpa mais saborosa e doce não tem o aroma do cupuaçu.
A nossa parceira Fabiola se envolveu com as crianças e essas a convenceram a se deixar pintar com Jatobá afirmando que a tinta sairia depois de uma semana. A cor escura, quase preta, do jenipapo teria atributos anti-sépticos e agia como protetor solar segundo elas. A parceira permaneceu com a tinta escura na pele por mais de dez dias o que não evitou que ela tivesse sérios problemas com queimaduras pelo sol.
Jenipapo (genipa americana) - da familia das Rubiaceae possui ótima madeira para a construção de moveis. O seu fruto é uma baga subglobosa que geralmente é de cor amarelo-pardacenta, com polpa aromática, comestível, de que se fazem compotas, doces, xaropes, bebida refrigerante, bebida vinosa e licor. Além disso, é possível extrair do fruto uma tinta preta, muito usada pelos indígenas, há milênios, em petróglifos, cerâmica, cestaria, tatuagens, pintura corporal etc.
- Entrevista com o Cacique João Farias Filho
“Boa tarde, coronel! O senhor foi muito bem recebido na Comunidade. Meu nome é João Farias Filho, eu sou o cacique da Comunidade Feijoal e estou representando mais de 2000 pessoas. Eu quero levar ao conhecimento de todos que, na nossa Comunidade, embora o senhor tenha elogiado a sua infra-estrutura, está faltando ainda muita coisa nas áreas de educação, saúde e saneamento básico. Eu quero levar este recado para que o senhor possa agir pela gente. Na nossa escola, os alunos não têm espaço para desenvolver suas habilidades, não tem uma área de lazer, uma sala de informática que possam fazer uso após as aulas. Nos já temos computadores, mas falta a conexão com a internet. Eu queria que o governo auxiliasse nossos mais de 1000 alunos, oferecendo-lhes outras possibilidades, como cursos profissionalizantes e acesso à internet, para que eles possam verificar como anda o mundo lá fora. Por isso que nosso jovem, e de outras Comunidades, também, sem maiores perspectivas, acaba por se envolver com as drogas e com a violência. Nós temos vários projetos para levar avante, e que foram apresentados aos políticos, mas até agora nada foi feito”.
- Um jantar especial
Compramos uns peixes (traíras e jaraquis), e o Arsênio nos instou a que o mesmo fosse preparado na sua casa. Deixamos os peixes com ele e fomos nos preparar para o jantar. Chegando à casa do amigo, retiramos os chinelos na varanda e nos dirigimos aos fundos da residência. A tia do Arsênio preparava o jantar num fogo de chão montado na ampla sala. Conversamos um bom tempo sobre os assuntos mais variados; os amigos Tikunas estavam muito bem informados sobre os problemas nacionais e internacionais, pois, como havíamos documentado, quase todas as casas possuíam televisão. A curiosidade maior foi a posição das antenas parabólicas - na horizontal - já que essa era a posição ideal para quem estava instalado nas proximidades da Linha do Equador onde se localizam os satélites geo-estacionários.
Jaraqui (prochilodus brama) - peixe teleósteo, caraciforme, caracídeo, muito comum no Amazonas, o corpo apresenta listras negras horizontais na parte superior da linha lateral, mais acentuadas na parte posterior. Semelhante ao curimatá.
O cacique João, evangélico, fez-se presente e antes da refeição, encabeçou uma prece em agradecimento ao Senhor. Sentados, cerimoniosamente, no chão, consumimos o delicioso jantar preparado pela tia de Arsênio. Durante a refeição, provoquei o cacique para que nos relatasse algumas de suas lendas e costumes. Ele nos relatou como foi criado o Povo Tikuna e a festa da Moça Nova.
- ONGS
O cacique comentou sobre a ausência de ONGs nas comunidades Tikunas. Respondi a ele que a partir do momento em que fossem descobertas riquezas minerais em suas terras, estas apareceriam às dezenas disputando acirradamente as preferências dos Tikunas sem qualquer constrangimento.
Quero deixar registrado meu agradecimento a cada comunidade Tikuna que nos brindou com sua hospitalidade e carinho na minha inesquecível jornada pelo Solimões e em especial ao cacique João Farias Filho.
Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)
Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS)
Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br