Torianita contém urânio e é extraída clandestinamente na Amazônia.
Minério pode ser usado em usinas nucleares e em bombas atômicas.
No extremo norte do Brasil, um tipo diferente de traficante desafia a segurança nacional. São os vendedores de material radioativo, retirado ilegalmente das reservas brasileiras na Amazônia e negociados na capital do Amapá.
O minério extraído sem autorização é a torianita, que contém urânio – material essencial para o funcionamento de usinas nucleares e de bombas atômicas. Por lei, esse mineral só poderia ser extraído pelo Governo Federal.
Não há um levantamento sobre o volume de torianita nas reservas brasileiras, mas estimativas da INB (Indústrias Nucleares do Brasil) – empresa vinculada ao ministério da ciência e tecnologia – indicam que o Amapá tem uma das principais fontes desse minério no mundo. A torianita é encontrada na região oeste do estado, nas margens de rios, dentro da floresta amazônica.
Toneladas à venda
Informações sobre o contrabando do minério levaram a reportagem do Fantástico até um homem que se apresenta como Marco. Ele diz que, em oito dias, pode garantir oito mil quilos de torianita, e faz propaganda do produto: “[Serve para] soltar foguete, fazer arma, bomba atômica.” O fornecedor diz que tem material para uma compra muito maior. “Eu acho que vai 15, 20 toneladas consegue tranquilo lá.”
Um garimpeiro que não quis se identificar revela que o comércio clandestino é conhecido e acontece à luz do dia. “Eu conheço um bocado de gente que negocia isso. Quando aparece o comprador, aí eles vão lá, extraem a quantidade que o comprador quer.”
A reportagem fez contato com outro homem que vende o minério radioativo. Em um quarto de hotel, ele entrega uma amostra de torianita de cerca de dois quilos. “Esse material daqui é um dos melhores do mundo. Não tenho nem dúvida de te falar isso aí.”
Radioatividade comprovada
Para verificar se o material era mesmo radioativo, a reportagem levou a amostra para a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cenen).
A análise comprova que se trata, de fato, de torianita. O minério tem 73,7% de tório – elemento químico que é radioativo mas, segundo especialistas, com praticamente nenhum interesse comercial. O mais importante para quem está interessado no contrabando é que na torianita há quase 8% de urânio. Em seis toneladas do minério, por exemplo, são 480 quilos de urânio.
Questionado se o minério serve para pesquisas nucleares, o especialista Luiz Felipe da Silva, da INB, confirma: “Eu diria que possível é. A gente sabe que tem urânio aqui. Tem até bastante. Muito mais que os minérios habituais de urânio costumam ter.”
O engenheiro da INB diz que o Brasil não usa torianita como fonte de urânio porque o custo de extração seria alto demais. O urânio que abastece nossas usinas vem da Bahia, de um minério chamado uraninita.
Para quem não tem acesso ao material, contudo, a torianita pode ser uma saída, já que o uso de minérios radioativos é controlado por organismos internacionais.
E quem se dispõe a comprar o produto ilegal paga caro. No mercado regular, países que obedecem normas mundiais podem comprar um quilo de urânio puro por 200 reais. Nas negociações clandestinas, contudo, o quilo do urânio ainda misturado à torianita, sem passar por nenhuma purificação, pode chegar a R$ 2.500 o quilo – 12 vezes mais.
Urânio sem controle
Não é simples construir uma bomba a partir da torianita. O físico Luís Carlos de Menezes, da Universidade de São Paulo lembra que são necessárias tecnologia sofisticada, que poucos países têm, e grandes quantidades de urânio.
Ainda assim, ele faz um alerta sobre esse mercado ilegal de material radioativo no Brasil. “O destinatário final pode ter diferentes fornecedores e somar uma quantidade expressiva. Possivelmente, em uma atividade desse tipo, o interesse é ter urânio não controlado. Fazendo uma metáfora, é como bandido que quer arma não controlada.”
Risco de câncer
A facilidade com que se tem acesso a esse material perigoso impressiona. Dependendo da quantidade, os negociantes têm a torianita praticamente à pronta entrega, e eles nem precisam ir ao garimpo. Em Macapá, e em cidades perto da capital, garimpeiros guardam o minério radioativo dentro de casa, dispostos também a participar desse negocio altamente arriscado.
Em 2006, a polícia encontrou 250 quilos de torianita no quintal de uma casa, em Macapá. No ano passado, mais uma tonelada do minério foi apreendida na cidade. “A cidade inteira está cheia de torianita. Muita, não é pouca não. Essas pessoas que mexem não têm muita consciência e não sabem o perigo que elas correm”, diz um dono de garimpo que não quis se identificar.
Segundo o professor de química José Marcus Godoy, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), o material pode trazer riscos à saúde. “Essa pessoa que tem em casa grande quantidade de torianita, e está se expondo por um período muito grande, tem certamente uma maior probabilidade de vir a contrair um câncer.”
Entrega garantida
Os comerciantes desse mercado ilegal não só vendem a torianita, como também garantem a retirada do minério do território brasileiro. E a principal rota de saída é por água, mas nunca pelos portos. Pequenos barcos que podem sair de qualquer ponto do Rio Amazonas levariam o material radioativo até grandes embarcações, longe da costa e da fiscalização.
“Com o barco, a gente chega até Belém, entendeu? Lá embarca num caminhão”, diz um comerciante ilegal, que também oferece a opção de retirar o material em um navio. “Aí já são outros caminhos, entendeu? Mas a gente tem como fazer.”
Uma característica física do minério facilita o transporte ilegal: a torianita é muito densa. Uma garrafa pet de dois litros cheia de torianita teria 16 quilos, enquanto com água pesaria apenas dois quilos. Por isso, os negociadores dizem que o minério pode ser facilmente escondido em cargueiros porque ocupa menos espaço do que outros materiais.
Destino desconhecido
“Teve uma época aí que eu estava negociando com o pessoal do Iraque, os árabes. A única informação que eu tinha é que ia para o Iraque”, diz um traficante.
O Fantástico teve acesso a um inquérito aberto pela Polícia Federal em 2006. As investigações revelaram indícios da participação de grupos de mineração, empresários e até uma ONG no tráfico de torianita.
Mas a polícia não conhece ainda o destino ou os compradores do urânio brasileiro. Chaneiko, Skibinsk e Farid são alguns nomes de estrangeiros suspeitos de envolvimento nas negociações com a torianita.
“Eu não formaria imediatamente uma imagem de que tudo isso está sendo usado pra construção de um arsenal nuclear. Mas é importante saber quem está por trás desse mercado”, afirma Odair Gonçalves, presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear.
“Se trata, mais do que tudo, de olhar o que tem na torianita que pode interessar, se o interesse é tecnológico ou militar. De toda maneira, é preocupante que esse ilícito se dê na fronteira brasileira”, diz o físico da USP Luís Carlos de Menezes.
Procurada pelo Fantástico, a Polícia Federal no Amapá se recusou a falar sobre as investigações de contrabando do urânio brasileiro.
Em nota, a direção da Polícia Federal, em Brasília, informou que está intensificando as operações na região e que os trabalhos de apuração dos fatos ainda estão em andamento. Ainda segundo a nota, qualquer divulgação neste momento prejudicaria o inquérito.
“Não tenha dúvida de que pode chegar a mãos erradas, e o aparelho do estado brasileiro tem que reprimir e controlar melhor esse quadro”, sentencia o juiz federal João Bosco Soares.
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